quarta-feira, 16 de maio de 2012

Saudade pela boca

Faz frio e estou tomando chocolate quente. Chocolate quente de verdade, com um pedaço de chocolate de verdade, bem escuro e bem brilhante.  Hoje de manhã no hospital em que eu trabalho um pessoal do Starbucks estava oferecendo café e uns mini pedacinhos de brownie. Comi uns dez. Frio é assim mesmo: a gente fica com vontade de comer, de ficar dentro de casa e de ficar junto.

Quando eu era pequena ia todos os domingos à casa da minha avó paterna. Normalmente os adultos diziam que lugar de criança "era lá fora", no quintal, mas às vezes – imagino que no frio – fazia-se exceção e as crianças iam pra cozinha fazer biscoito de nata. Veja, quando eu digo “as crianças”, estou me referindo ao sem fim de netos de uma mulher que teve catorze filhos. Todas as manhãs ela fervia o leite (muito leite) e pouco a pouco ia juntando a nata com que depois os netos faríamos biscoito. Eu não tenho muita lembrança da confecção da massa – talvez fossem os adultos e as crianças mais velhas quem cuidassem dessa etapa – mas depois eram metros e metros de massa aberta, e aí era a hora de a criançada liberar a criatividade, porque a massa de biscoito virava escultura. Lá na casa da vovó Alice tinha forminhas de todos os formatos possíveis, mas o legal mesmo era pegar a faca e recortar um biscoito único, personalizado! O biscoito mais bonito que eu vi foi um porquinho que uma das tias, a Vana, fez. Tinha rabinho de porquinho, focinho de porquinho e corpinho roliço, em forma de barril. As fornadas iam deixando um cheiro quente inebriante pela casa toda, as crianças loucas pra ver o resultado final das obras de arte. A Vana deixou e eu comi o porquinho dela.

Tinha também o pão da Bel. Acho que a Bel nem sabe que é assim que eu me refiro ao pão dela. Era tão legal amassar o pão da Bel! Tinha que sovar mesmo, meter a mão com uma força que na época eu não tinha! Será que meu irmão do meio se lembra de nós dois arremessando o pão da Bel contra a bancada? Depois, mais um cheiro inebriante, e como era bom comê-lo pelando, a manteiga derretendo já quando a faca se aproximava da fatia fumegante! Fim de semana de frio, quando eu ficava em casa, sempre pedia pra minha mãe: “mãe, vamos fazer pão da Bel?”.

Na casa da minha avó materna era diferente. Ela se chamava Maria de Nazareth e detestava quando algum desavisado via seu nome no cheque e a chamava de “dona Maria”. Ela nunca cozinhava, mas era meticulosa e detalhista que só, de modo que a casa dela também tinha suas iguarias. Eu gostava muito do suflê de nozes, mas bom mesmo era o bom-bocado. Eram pequenininhos, não como esses enormes que a gente vê na padaria. E outra, os bom-bocados da minha avó não levavam coco, e eu sempre tive uma aflição danada do barulhinho que faz quando a gente mastiga coco. Por cima do bom-bocado ficava aquela casquinha dourada de queijo ralado, e por dentro era aquele não-sei-explicar que derretia na boca! Eu e minha mãe comíamos uns dez, quinze cada uma. Se tivesse mais, comíamos mais.

Aqui em casa tem a receita do bom-bocado, do suflê de nozes, do biscoito de nata, do pão da Bel e de outras receitas de família. Será que um dia vou voltar a assar uma fornada de biscoito de nata? Será que vai ter graça, o gosto sem os personagens em volta? Será que todas essas comidinhas de família são realmente tão gostosas quanto me dizem as lembranças, ou o sabor se mistura com o afeto? Quando eu tiver meus próprios filhos talvez essas receitas acordem, talvez venham outras. Grande sacada dos comerciais de tempero, arroz e margarina essa coisa de mostrar a cozinha como cenário de tanta afeição. Um bom prato de comida de fato pode ser uma declaração de amor.

Eu tenho saudade dos sabores da minha infância. Comer com o pensamento não é a mesma coisa.



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