É terça-feira e são cinco horas
da manhã. O pobre coitado que passa no Santana caindo aos pedaços quase não
acredita na moça que caminha em direção à esquina. Ele pensa que tirou a sorte
grande e já desacelera pra começar as negociações, mas ela olha pra ele com
desconfiança, faz meia volta e desiste de plantar-se na esquina. O homem vai
embora resignado com a perspectiva de mais um dia de labuta e – como se não
bastasse – ressaca.
***
Domingo à noite o pós Carnaval da
moça ganhou ares de infância quando chegou a surpresa: quatro patinhas
totalmente despreparadas para equilibrar o corpinho roliço de apenas 43 dias. A
cachorrinha chamou-se Graviola, pois a menina que morava dentro da moça achou
fofo, embora muitos tivessem tentado dissuadi-la da escolha argumentando que o
nome era muito grande.
Até a moça ficou cansada, mas a
menininha não queria senão apertar, apertar, apertar. Ela estava explicando à
Graviola que sua razão de ser era fazer aquela criança feliz – função que a cachorrinha
desempenhava com maestria.
Finalmente a moça conseguiu
levá-las – a menininha e ela própria – pra dormir. Na segunda-feira elas teriam
de acordar particularmente cedo, pois a moça tinha reunião às sete e meia da
madrugada.
Segunda, seis horas da manhã veio
a constatação trágica de que a Graviola desaparecera. O avô dela – também pai
da moça – já procurara em todo canto, inclusive na rua, do outro lado dos altos
muros que cercam a casa da família. Ele já colocava as meias e os sapatos,
resignação de segunda-feira e de Graviola, quando a moça, inconformada,
resolveu ela mesma iniciar as buscas pelo bairro.
Do outro lado dos altos muros que
cercam a bela casa da família as moças que não têm família trabalham dia e
noite pra pagar o aluguel do quartinho da espelunca. Ainda bem: não fosse
assim, não estaria na esquina a Rose. A Rose tem três filhos
pequenos e um pai que deixou de ser taxista porque virou cadeirante, mas a
própria tragédia não a impediu de ficar profundamente comovida com o drama da
menininha que perdera a cachorrinha. A Rose tinha visto a Graviola. Ali mesmo na
esquina, brincando serelepe com os passantes que começavam suas
segundas-feiras. Minutos antes de a moça aparecer, revelou a Rose, uns rapazes
que passavam por ali todo dia levaram a cachorrinha. Mas levaram pra onde, meu
deus?! A Rose não sabia.
***
Terça-feira, quinze para as cinco
da matina o despertador toca, como se precisasse. Moça e menininha pulam da
cama. Era quase um tirar o pai da forca. Vestem-se às pressas, a moça um pouco
preocupada com o que vestir em tão pitoresca ocasião. A primeira coisa que aconteceu quando ela
pisou fora de casa foi a sua preocupação se justificar. Ela não tinha medo de
violência física, mas, ah!, que nojento ser olhada daquela maneira por aquele homem
também nojento! Fez meia volta, esforçou-se ao máximo para parecer moça de
família e quando o nojento foi embora voltou a caminhar na direção da esquina
somente para constatar, desolada, que a Rose não estava lá. Porque era a Rose a
única pista do desaparecimento da Graviola, ela esperou. Na esquina, de
madrugada, em situação inédita pra moça que se preze.
Logo um carro encostou na esquina
e a Rose desceu. A moça bem imaginou que ela devia estar trabalhando, pois na
noite anterior ela havia jurado que todos os dias exercia o ofício até seis da
manhã naquela esquina. Juntas elas puseram-se a esperar os supostos
sequestradores da Graviola. Como eles não passavam nunca, a moça ficou sabendo dos
três filhos da Rose, do acidente que paralisara seu pai, dos seiscentos reais
de aluguel, do ex-patrão, etc. Elas caminhavam alguns metros, a Rose com dor no
pé e com o chinelo de dedo arrebentado.
Lá pelas tantas a moça foi pra
casa chorar no colo da sua mãe porque os suspeitos não passaram. A mãe, é
claro, sentia pela filha. Muniu-se de sua calma e maturidade e foi para a rua. Andou
para além da esquina da Rose, que não estava mais lá, e deparou-se com um ponto
de táxi. Contou aos motoristas o pranto da filha, e eis que surge uma nova
pista. Havia sim uns moços, mas não era todo dia, era toda segunda-feira.
Pegavam a tal da van e iam para a tal da construção pegar no tal do batente
durante toda a semana. E não é que um dos taxistas lembrava o nome da empresa?
A mãe só foi acordar a moça, que
voltara a dormir, depois de jogar o nome da empresa no Google, contar à
secretária a história da Graviola (com o adendo “criança doente”), descobrir
que a cachorrinha fora levada para uma construção em Porto Feliz (onde estava
fazendo a festa dos pedreiros/sequestradores) e garantir que o mestre de obras
a traria pra casa sã e salva na noite de quarta-feira.
Epílogo
A Graviola voltou pra casa por
volta das oito da noite, alegre e frenética como no dia em que eu a conheci. A
Rose deve ter chegado na minha esquina bem mais tarde do que isso. Como
trabalho de dia e à noite estou dormindo, ainda não consegui encontrar a Rose
para agradecer pessoalmente, coisa que meu pai já fez. Eu acho que ela não lê
meu blog. Acho mesmo que nem acessa internet. Estou devendo um “obrigada” de
todo tamanho pra essa mulher.
foto: Caroline Riley
Happy ending! Quero conhecer essa Graviola em pessoa =]
ResponderExcluirQue linda!!! Viva a Graviola!!!
ResponderExcluirEla é linda demais! Imagino o seu desespero...que bom que o final foi feliz!!
ResponderExcluirSapeca sapeca Graviola! E que legal a historia, e com final feliz...
ResponderExcluirCaysa
Gravioooolaaaaa! Deve estar gigante essa danada.
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